Para ouvir: A carta
Dedicatórias de livros são como cartas. Há uma certa magia em debruçar-se na folha de papel em branco, depositar sentimentos guardados no peito e destiná-la para a pessoa querida. Há também um certo encanto em dedicar um livro para a pessoa amada. A palavra escrita à mão transcende a cronologia normal dos tempos.
Certa vez, recém-chegada a um novo apartamento, fui fazer a faxina rotineira e encontrei uma carta no canto mais improvável. Varrendo a cozinha, dei de cara com um papel amassado, sujo, escrito a mão, esquecido por detrás da geladeira. Uma carta recheada de amor.
Derramando saudade pelos cantos, a hóspede anterior daquele lugar buscava encontrar pelas ruas festivas do carnaval da cidade que vivia, seu amado. “Aqui o carnaval é ‘super comportado’, não vi brigas, nem putaria. O caos casteño se transparece em alegria e flerte. Eu me transformei em dança”, escreveu docemente. A carta não estava assinada, parecia não haver precisão. Seu destinatário já conhecia exatamente aquela letra escrita com a pressa de um amor que sofria de lonjuras.
“Não sei bem se é possível definir, mas nesses momentos, o fato de te pensar me fez sentir o vento me atravessar, com um ato de pura carícia”, desabafou a menina que eu desconhecia o rosto. Mas a cada frase lida, aquela menina se revelava para mim, enamorada, saudosa e mergulhada nas carícias de seu intenso amor, que devia esperar ansiosamente seu regresso. Ela não sabia e talvez nunca saiba, mas, eu ali sentada sozinha naquele lugar que já foi sua morada, torne-me sua confidente.
Mas, se minhas mãos foram o destino final daquelas palavras, por alguma razão a carta não foi enviada. O amor acabou? Aquilo era um rascunho? Não sei bem, mas poderia facilmente construir toda aquela história de amor na minha cabeça porque, de alguma forma, estávamos ali conectadas. As palavras escritas à mão, o sentimento e o peito aberto criou uma conexão além-tempo entre eu e a menina apaixonada.
E o que isso tem a ver com a dedicatória de livros? É que as palavras manuscritas em papeis amassados ou na folha de rosto do livro, transcendem a cronologia normal dos tempos. Se ressignificam a cada novo encontro. Você já achou livros usados com dedicatórias e tentou refazer a história daquele exemplar até o ponto de ele ter chegado ali? Quando o livro é repassado para outros donos, o que fica não é a história do miolo do livro narrada pelo autor. É a história da dedicatória. É ali que o encanto acontece. E o mundo volta a rodar o maquinário das histórias de amor perdidas no além-tempo de um papel com palavras escritas à mão.
dedique uma carta ou um livro para alguém, passarinha.
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